segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Uma crítica às Diretrizes Curriculares de História - Parte I: Currículo e Movimentos Sociais

Recentemente os professores de História da Educação Pública do Estado do Paraná receberam uma proposta de conteúdos para a disciplina[1], como parte das discussões sobre as Diretrizes Curriculares da Educação Fundamental do Estado. Salvo engano, esta lista já é a terceira orientação que recebemos sobre a escolha dos conteúdos desde o início do debate sobre as Diretrizes. A primeira lista de conteúdos a aparecer mantinha uma cronologia “linear” (embora apresentasse uma divisão diferente dos conteúdos por série) e privilegiava os temas de história do Brasil. Já em 2007 fomos informados nas reuniões técnicas que a proposta de uma lista de conteúdos não fazia mais parte das preocupações da SEED naquele momento, e nossa atenção deveria se voltar para as discussões teóricas que subsidiavam as Diretrizes. Agora, em 2008, aparece essa nova proposta que defende uma abordagem temática para a disciplina e que rompe com a cronologia linear, tradicional no ensino de História. Evidentemente, essa proposta temática é inovadora. Mas será progressista?
Esse artigo, o primeiro de uma série de cinco, procura desenvolver uma crítica, dentro de uma perspectiva marxista, à proposta das Diretrizes Curriculares do Ensino de História do Paraná. Em especial, vamos levantar aqui algumas hipóteses que podem ajudar a explicar um sentimento comum a muitos professores da rede estadual: a perplexidade que experimentam à cada nova proposta curricular apresentada pela SEED, causada principalmente pela distância entre o que esses currículos sugerem e o que esses professores realmente fazem em sala de aula. E preciso compreender os fatores que separam os que formulam os currículos dos professores do 'chão de escola'. É nossa contribuição ao debate.

1. A Redemocratização e o Currículo Básico do Estado do Paraná

Tem sido lugar comum estabelecer vínculos entre as propostas curriculares e o contexto histórico do qual fazem parte - suas características políticas, sociais e econômicas específicas. No final da década de 80, no Paraná, surge a proposta do Currículo Básico do Estado, fortemente influenciada pela Pedagogia Histórico-Crítica, de base marxista. Essa pedagogia era uma resposta no campo educacional a um período marcado por intensas mobilizações populares, que tinham como alvo o fim do regime militar e a redemocratização do país. As greves do ABC (79), a luta pela Anistia (79) e o movimento pelas Diretas Já (84) são os momentos mais lembrados dessa história onde diferentes setores da sociedade (mas principalmente a classe trabalhadora organizada) saíram às ruas exigindo mudanças profundas no país.
O impulso gerado por esse período de intensa mobilização social levou a Pedagogia Histórico-Crítica a experimentar mesmo uma 'hegemonia’ nos debates sobre currículo. Professores de 'chão de escola’ mais progressistas e professores universitários podiam ser (e foram, em certa medida) atraídos pelo compromisso dessa pedagogia com a apropriação dos saberes historicamente acumulados por parte das classes trabalhadoras. Uma proposta progressista, que ganhou espaço mesmo no governo Álvaro Dias, do PMDB. Mas a forma com que foi aplicada entrou em franca contradição com o seu conteúdo. Quando a proposta ficou pronta, as grandes mobilizações sociais já entravam em refluxo. A euforia 'democrática' cedera espaço às decepções com o plano Cruzado, à inflação galopante e à eleição de um reacionário filhote da ditadura: Fernando Collor de Melo. Uma hipótese que pode explicar a pouca adesão dos professores ao Currículo Básico é de que o documento, a despeito do grande avanço que representava, ficou ligado aos destinos do governo Álvaro Dias. Decidido e implantado burocraticamente, entrou pelo 1º governo Requião com a desconfiança dos professores da rede pública, que traziam na memória as marcas das perdas salariais e as agressões sofridas no 30 de agosto de 1988.
No entanto, isso não apaga suas virtudes. Naquele momento, professores do chão da escola e pesquisadores, influenciados pela mobilização popular, podiam falar a linguagem comum da redemocratização. Os conteúdos de história apresentados no programa procuravam atender a uma questão geral: que conteúdos historicamente acumulados podem e devem ser apropriados pelo alunos das classes trabalhadoras, com vista à sua luta por emancipação social?

2. O mercado de trabalho e os PCNś

Em 1998 apareceram os Parametros Curriculares Nacionais, uma nova orientação curricular implantada pelo governo federal da época, para responder às 'novas' exigências de uma economia capitalista cada vez mais 'globalizada', e que estava impondo uma reestruturação da divisão mundial do trabalho, com suas políticas de abertura dos mercados, privatizações, retiradas de direitos trabalhistas e novas formas flexíveis de produção. Em um recente documento enviado para as escolas[2], a SEED faz uma crítica contundente dos PCNs e suas premissas, que levavam a fragmentação do saber e ao esvaziamento dos conteúdos; a ênfase no desenvolvimento de 'competências e habilidades' com intenção de preparar os alunos às estritas exigências do 'mercado' de trabalho; a defesa do voluntarismo e do senso comum escondido por trás da pedagogia de projetos; e ao desvio das prioridades da escola com a implantação dos temas transversais. Além disso, a imposição tecnocrática desses PCNs marcaram história. Técnicos do MEC, equipes de assessores internacionais e alguns poucos professores universitários deram o tom desses documentos. O professor de 'chão de escola' foi considerado um mero executor desses programas. Curiosamente, foi com os PCNś que a proposta de História Temática para o ensino fundamental foi imposta nos currículos de todo o país. Podemos resumir as intenções desses PCNś à seguinte questão: que competências e habilidades os alunos devem aprender para atender às novas exigências do mercado de trabalho?

3. O 'Bonapartismo Historiográfico' e as Diretrizes Curriculares do Paraná

Mais recentemente, os governos vinculados estreitamente às políticas de reestruturação do capitalismo (conhecidas equivocadamente como políticas ‘neo-liberais’) foram derrotados nas últimas eleições, após um período importante em que alguns movimentos sociais se rearticularam (movimentos contra as privatizações, pela reforma agrária, greves do funcionalismo público, etc....). Mas se esses governos foram 'derrotados' e substituídos por governos supostamente mais sensíveis ao atendimento das reivindicações populares, não podemos dizer que essa mobilização social alcançou força o suficiente para alterar substancialmente as políticas em curso. No Paraná, essa situação se expressa na forma em que vem sendo discutida e proposta as Diretrizes Curriculares da Disciplina de História. Por um lado, se os defensores do capital já não conseguem impor seus PCNs com facilidade, por outro, a classe trabalhadora também experimenta dificuldades em articular um projeto de transformação social e, consequentemente, educacional. Sobra espaço então para uma maior autonomia da ciência de referência de nossa disciplina: a História. De fato, nenhum dos currículos anteriores absorveu tanto a produção historiográfica contemporânea quanto as atuais diretrizes. São conceitos e métodos transpostos de correntes historiográficas (como a História das Mentalidades, a Nova História Cultural e da Historigrafia Marxista Inglesa) diretamente para o saber histórico escolar.
Colocados em relativa distancia dos compromissos políticos com um e com outro lado - ambos incapazes no momento de imporem seus projetos educacionais – os formuladores do currículo encontram refúgio nas particularidades da História enquanto um campo de saber específico, e passam a influenciar diretamente o saber histórico escolar, sem se sujeitarem aos filtros políticos e ideológicos a que estavam submetidos anteriormente. Uma espécie de 'Bonapartismo Historiográfico'. No máximo, são chamados a dar resposta a pressões setoriais, como é o caso da incorporação de conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira. Assim, a questão que as novas Diretrizes parece querer responder é a seguinte: que conceitos e métodos, oferecidos pela produção historiográfica contemporânea, os alunos devem aprender para 'pensar historicamente'?

4. Uma mudança estrutural

Esse novo domínio da ''História Acadêmica” na produção do saber histórico escolar no Paraná não pode ser explicado apenas pela conjuntura política descrita acima. Há também uma mudança estrutural importante. De fato, com a expansão dos cursos de pós-graduação, com a oferta de emprego decorrente do crescimento do número de faculdades particulares e com a diversificação do mercado editorial brasileiro, aparecem novas oportunidades de emprego para os que estão envolvidos diretamente com a ‘produção historiográfica’, ampliando o espectro das especializações e reforçando uma hierarquia entre instituições de pesquisa histórica. Em uma primeira impressão, podemos afirmar que cada vez mais setores da ‘academia’ ganham uma autonomia relativa, criam seu próprio universo de relações e se distanciam de certas contingências sociais, como a de formar professores (a UFPR recentemente instituiu um curso noturno de bacharelado em história, rompendo com uma tradição de formação integral e que incluía as disciplinas de licenciatura) . Hoje em dia os novos pesquisadores e futuros professores universitários podem abrir mão da labuta em uma sala de aula do ensino fundamental e médio (ou então, trabalhar nelas por um tempo muito reduzido). E no entanto, esses mesmos profissionais podem ser chamados a discutir programas de ensino, dado o papel que têm na divisão de tarefas que se aprofunda e que atinge os trabalhadores da história – separando-os entre aqueles que fazem pesquisa (e formulam currículos) e aqueles que ensinam.
De fato, professores universitários foram chamados como assessores da Equipe de História responsável pela produção das Diretrizes. No entanto, essa equipe é formada substancialmente por professores egressos dos quadros da própria Secretaria de Educação. Por que então as propostas de conteúdos parecem tão distantes das experiências vividas por professores do ‘chão da escola’? Há uma série de fatores a se levar em conta: 1ª- os profissionais que passam a trabalhar para a SEED, são afastados em tempo integral de suas atividades como professores; 2ª – em parte, já foram selecionados para aturarem na formulação de currículo e na produção de material didático por suas ligações com a ciência de referência e por suas aptidões para esse tipo de trabalho; 3ª – são tão afetados por aquela mesma conjuntura de refluxo dos projetos populares, quanto pelo avanço da autonomia relativa do campo historigráfico; 4ª – mas principalmente porque a burocracia estatal, longe de dissolver as diferenças, reforça as divisão social do trabalho e a hierarquia de comando. Mas esse último aspecto e sua influência nas discussões das Diretrizes Curriculares de História ficam para o próximo artigo.

[1] São os Conteúdos Básicos de História – Ensino Fundamental. Recebemos nossa versão em junho de 2008.
[2] Trata-se do texto: Os Desafios educacionais contemporaneos e os coteúdos escolares: reflexos na organização da proposta pedagógica curricular e a especificidade da escola pública, produzido pela Coordenação de Gestão Escolar da SEED, e discutido nas escolas durante a semana pedagógica de julho de 2008. Em geral, temos muitos acordos com esse documento. Mas a linguagem 'acadêmica' demais em que foi escrito trouxe sérias (e desnecessárias) dificuldades para seu entendimento por parte de professores e funcionários.

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